O Laboratório Secreto do Capital

O Laboratório Secreto do Capital

por Pedro Lago em 09.11.2021

No século 19 a luta era contra a exploração do ser humano e a expropriação do acesso aos meios de subsistência e aos meios de produção; em outras palavras, o acesso a comida (alimento), moradia (abrigo) e vestimenta (agasalho), e a ferramentas, terra e trabalho. No século 21 a luta é contra a indiferença, a auto exploração e a auto-destruição do ser humano e da natureza. O ser humano é a primeira espécie ameaçada de auto-extincão. O sujeito de desempenho se realiza na morte.
Realizar-se é autodestruir-se.

A sentir-se inspirado com Marx, Nancy Fraser, Eric Wright e Byung-Chul Han

OS BASTIDORES DO LABORATÓRIO SECRETO DO CAPITAL

O explorador e explorado fundiram-se na mesma pessoa.

A tecnologia evoluiu com inacreditável rapidez, e o cenário das fábricas como pudemos ver nos filmes ‘O Jovem Marx’ e no documentário ´Carne e Osso’ mudaram drasticamente neste intervalo de dois séculos. Porém, a situação dos trabalhadores nas fábricas e indústrias não é muito diferente no século XIX ou XXI. A divisão de classes ficou um pouco mais complexa e alguns gerentes e supervisores que possuem boa formação acadêmica e um salário razoável possuem alguns sentimentos paradoxais com relação a seus interesses de classe. Porém, uma característica que Marx observou na sociedade capitalista de meados do século dezenove permanece muito nítida na nossa sociedade atual: A acumulação se dá via exploração e pela expropriação do acesso aos meios de se desfrutar da vida com dignidade. A diferença é que o capitalismo de hoje encontrou formas mais cruéis e sofisticadas de explorar e expropriar.

Com a evolução da tecnologia, o capital se reinventou e inventou que o trabalhador agora é o cliente. Com isso, os donos da tecnologia e dos meios de produção ficam livres para explorar não só o trabalhador (que agora chama de usuário), mas também explora os próprios meios de produção do próprio trabalhador que assume e exerce sua atividade sob todos os riscos. Motoristas e entregadores de aplicativo vão concordar que não lemos e concordamos com os termos de uso." É assim que funciona, ou pelo menos funcionava, não é?

Para Marx, o capitalismo se caracteriza por uma divisão de classes entre proprietários e produtores, decorrente da propriedade privada dos meios de produção, da exploração do trabalhador e da expropriação do acesso aos meios de subsistência e aos meios de produção; em outras palavras, o acesso a comida, moradia e vestimenta, e a ferramentas, terra e trabalho.

Outra característica marcante do capitalismo, segundo ele, é o seu caráter impulsivo de acumulação de capital - e a decorrente desigualdade imensa que ele gera e aprofunda com seu modo de operar. Na sociedade capitalista, “o capital em si torna-se o Sujeito”. E essa compulsão sistêmica por acumulação nos remete a quarta caracteristica marcante do capitalismo, o livre mercado. As mais importantes decisões sobre como investir o excedente de produção e para onde direcionar nossos esforços e investimentos foram delegadas para o mercado. E o que o mercado faz é transformar tudo em mercadoria, monetizando tudo segundo seu impulso, transformando o capital no sujeito que toma as decisões e subjuga os seres humanos e a vida aos interesses compulsivos de auto expansão e acumulação do capital.

O capitalismo agora tem forjado uma nova subjetividade. O sujeito da obediência dá lugar ao sujeito do desempenho, daquele que projeta sua melhor versão. “projeto”, “motivação”, “iniciativa” são algumas das palavras de ordem da vez. Antes dominado por leis, normas e mandamentos, agora o sujeito é reprimido - não pelo excesso de negatividades - mas por um excesso de positividades. Numa sociedade na qual tudo é possível e todas as metas são alcançáveis, a culpa do fracasso recai sobre os ombros do fracassado. “Se todos podem, você também pode. Se ele consegue, você também consegue. Se ainda não consegui, não deve ter se esforçado o bastante.”

Como está concorrendo consigo mesmo, o sujeito do desempenho busca se superar até sucumbir. É o que defende Byung-Chul Han no livro A Sociedade do Cansaço: “(...) a sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. […] Esses estados psíquicos [de esgotamento] são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por um excesso de positividade”.

Segundo Han, na atual fase do capitalismo, o sujeito de desempenho (este sujeito da era do “Seja a melhor versão de si mesmo") é mais produtivo que o sujeito da obediência da era foucaultiana do “Vigiar e Punir”. A lei e o mandamento dão lugar ao projeto e a iniciativa. O capital entrega ao sujeito uma pseudoliberdade. O sujeito agora está livre para obedecer apenas a sua própria vontade. “Just do it”. Nos bastidores, o capital emprega todo seu aparato de tecnologias, algoritmos e narrativas para incutir a sua vontade no subconsciente coletivo, criar desejos e moldar a vontade e a livre-iniciativa do sujeito de desempenho. O ócio e o tédio são abolidos. O tempo reprodutivo, o tempo criativo e o tempo contemplativo dão lugar ao tempo produtivo. O sujeito agora está livre para explorar a si mesmo e extrair sua melhor versão, atingir os mais altos niveis de perfomance, produtividade e felicidade. O excesso de positividade investido nisso conduz o indivíduo aos adoecimentos típicos da nossa época, que são, aos olhos de Han, especialmente a síndrome de burnout e a depressão. A felicidade, um indicador, torna-se um objetivo… inalcançável. Por que busca superar apenas a si mesmo, sucumbe.

O grande desafio da classe trabalhadora na época de Marx era lutar contra a exploração, a próxima grande luta será contra a indiferença. "Ser explorado significa que a empresa precisa de você. No entanto, ao ser irrelevante, você não faz diferença” - afirma Yuval Harari. O sujeito do desempenho e a sociedade da alta perfomance e da produtividade parecem caminhar para a auto-destruição… Segundo Han, o sujeito de desempenho se realiza na morte. Realizar-se é autodestruir-se.